Hereditariedade versus Meio

     A controvérsia hereditariedade e meio como influências geradoras e propulsoras do desenvolvimento humano tem ocupado, através dos anos, lugar de relevância no contexto geral da psicologia do desenvolvimento. A princípio, o problema foi estudado mais do ponto de vista filosófico, salientando-se, de um lado, teorias nativistas, como a de Rousseau, que advogava a existência de ideias inatas, e, de outro lado, as teorias baseadas no empirismo de Locke, segundo o qual todo conhecimento da realidade objectiva resulta da experiência, através dos órgãos sensoriais, dando, assim, mais ênfase aos fatores do meio. Particularmente, no contexto da psicologia do desenvolvimento, o problema da hereditariedade e do meio tem aparecido em relação a vários tópicos. Por exemplo, no estudo dos processos perceptivos, os psicólogos da Gestalt advogaram que os factores genéticos são mais importantes à percepção do que os factores do meio. Por outro lado, cientistas como Hebb (1949) defendem a posição empirista, segundo a qual os fatores da aprendizagem são de essencial importância ao processo perceptivo.

    Na área de estudo da personalidade encontramos teorias constitucionais como as de Kretschmer e Sheldon que advogam a existência de factores inatos determinantes do comportamento do indivíduo, enquanto outros, como Bandura, em sua teoria da aprendizagem social, afirmam que os fatores de meio é que, de facto, modelam a personalidade humana. Na pesquisa sobre o desenvolvimento verbal, alguns psicólogos como Gesell e Thompson (1941) preocupam-se mais com o processo da maturação como facto biológico, enquanto outros preocupam-se mais com o processo de aprendizagem, como é o caso de Gagné (1977), Deese e Hulse (1967) e tantos outros. Com relação ao estudo da inteligência, o problema é o mesmo: uns dão maior ênfase aos factores genéticos, como é o caso de Jensen (1969), enquanto outros salientam mais os fatores do meio, como o faz Kagan (1969).

    Em 1958, surgiu uma proposta de solução à questão, por Anne Anastasi, que publicou um artigo no Psychological Review, sobre o problema da hereditariedade e meio na determinação do comportamento humano. O trabalho de Anastasi lançou considerável luz sobre o problema, tanto do ponto de vista teórico como nos seus aspectos metodológicos. Isso não significa que o problema tenha sido resolvido mas, pelo menos, ajudou os estudiosos a formularem a pergunta adequada pois, como se sabe, fazer a pergunta certa é fundamental a qualquer pesquisa científica relevante.

    Faremos, a seguir, uma breve exposição da solução proposta por Anne Anastasi (1958), contando com o auxílio de outras fontes de informação. A discussão do problema hereditariedade versus meio encontra-se, hoje, num estágio em que ordinariamente se admite que tanto os factores hereditários como os fatores do meio são importantes na determinação do comportamento do indivíduo. A herança genética representa o potencial hereditário do organismo que poderá ser desenvolvido dependendo do processo de interacção com o meio, mas que determina os limites da acção deste. Anastasi afirmou que mesmo reconhecendo que determinado traço de personalidade resulte da influência conjunta de factores hereditários e mesológicos, uma diferença específica nesse traço entre indivíduos ou entre grupos pode resultar de um dos fatores apenas, seja o genético seja o ambiental. Determinar exactamente qual dos dois ocasiona tal diferença ainda é um problema na metodologia da pesquisa.

    Segundo Anastasi, a pergunta a ser feita, hoje, não mais deve ser qual o fator mais importante para o desenvolvimento, ou quanto pode ser atribuído à hereditariedade e quanto pode ser atribuído ao meio, mas como cada um desses factores opera em cada circunstância. É, portanto, mais preocupada com a questão de como os fatores hereditários e ambientais interagem do que propriamente com o problema de qual deles é o mais importante, ou de quanto entra de cada um na composição do comportamento do indivíduo. Anastasi procurou demonstrar que os mecanismos de interacção variam de acordo com as diferentes condições e, com respeito aos factores hereditários, ela usa vários exemplos ilustrativos desse processo interactivo.

    Um dos exemplos é o da oligofrenia fenilpirúvica e a idiotia amurótica. Em ambos os casos o desenvolvimento intelectual do indivíduo será prejudicado como resultado de desordens metabólicos hereditárias. Até onde se sabe, não há qualquer factor ambiental que possa contrabalançar essa deficiência genética. Portanto, o indivíduo que sofreu essa desordem metabólica no seu processo de formação será mentalmente retardado, por mais rico e estimulante que seja o meio em que viva.